O imenso vazio daquele terreno baldio era o cenário ideal para o que estava prestes a acontecer. Ele ali, parado diante do meliante, que ajoelhado e algemado implorava por sua vida. O suor escorria pela testa, a mão trêmula segurava a arma, o dedo no gatilho e a indecisão que lhe impedia de consumar o ato. Olhava nos olhos de seus comandados, sem saber o que precisava. Um ar de aprovação, ou um incentivo para que terminasse logo com o que foram fazer ali.
Desde que passou na prova para delegado, Antunes só pensava pôr em prática sua ideologia. Acreditava que a polícia poderia fazer um trabalho íntegro, limpo, sem subornos, propinas, violência excessiva ou qualquer outro ato que manchasse a imagem da corporação. Logo nos primeiros dias, percebeu que seria muito difícil mudar o sistema, mas continuou tentando.
Na labuta diária descobria diversas práticas ilegais que seus comandados praticavam: queima de arquivo, tortura, agressões e outros atos menos violentos. Tudo começou a mudar com sua chegada. No início torciam o nariz para a filosofia do novo delegado, contudo, com o tempo, passaram a seguir à risca as ordens do comandante.
Suas primeiras ações envolviam a conscientização de todos na delegacia. Apesar de estarem na mesma guerra urbana de traficantes, assassinos, ladrões e outros contraventores, policiais eram soldados diferentes. Se deixar corromper por qualquer centavo, agir de forma violenta, sem se importar com a lei, os transformava justamente naquilo que eles mais combatiam. Ainda que tenha percebido uma mudança de filosofia de uma forma geral, era evidente que os costumes de muitos anos não seriam assim mudados do dia pra noite.
Os policiais estavam acostumados a completar o salário do mês com o famoso “cafezinho”, propina recebida por qualquer coisa seja para evitar uma multa ou para liberar o tráfico de drogas. Analisar o comportamento e as ações individuais de cada um dos seus subordinados era algo além do alcance de Antunes.
Ao mesmo tempo em que mudava a maneira de pensar dos outros, aos poucos, o dia a dia também ia endurecendo o coração do delegado. Não era simples conviver diariamente com todo tipo de escória da sociedade e dormir tranquilo sabendo que as ruas estavam infestadas de gente desta estirpe.
Todas as noites ao chegar em casa verificava as trancas da porta. Mal conseguia pregar os olhos durante a madrugada. A preocupação com o bem estar da esposa e da filha adolescente ocupava sua mente em todos os segundos. Ameaças por telefone eram comuns. Assim como as que eram feitas ao vivo, nas ruas e na delegacia. A vida havia se tornado uma verdadeira batalha, cheia de estratégias de sobrevivência e planos para combater o oponente antes que o perigo pudesse alcançá-lo.
Colecionar inimigos se tornou trivial. Comerciantes que não podiam mais conceder benefícios aos seus clientes, como estacionar em local proibido, com policiais fazendo vista grossa. Meninos de rua da região que tiveram que erradicar de suas vidas os furtos e o consumo de drogas a luz do dia. Traficantes que estavam vendo o seu negócio ser enfraquecido com o combate implacável à venda de drogas e, até mesmo alguns membros da corporação que não aceitavam o novo estilo de vida.
A pouca tolerância da sociedade em relação aos marginais e os crimes cada vez mais violentos sendo cometidos faziam com que o Delegado abrisse mão de sua filosofia vez em quando. Se antes todo bandido merecia um julgamento, sem torturas e agressões, hoje, um tapa ou outro não fazia mal, ao contrário, ajudava a aliviar o estresse do cotidiano. A violência praticada pela polícia que no início era exceção, agora era regra.
Ao mesmo tempo em que ignorava os avisos de seus subordinados de que um dia veria que não há outra maneira de combater a violência que não fosse com mais violência, Antunes mudava a cada nova ação, se tornando mais próximo ao que inocentemente recriminava quando pisou pela primeira vez na delegacia.
A indignação se tornou maior que a ideologia quando uma jovem foi estuprada e degolada a pouco menos de dois quarteirões da delegacia. Uma menina com a idade de sua filha, que poderia ser sua filha, barbarizada por um rapaz de dezessete anos. Um crime bárbaro cometido por um menor. Antunes sabia que ele não seria punido como deveria, em pouco tempo estaria livre para cometer novas atrocidades.
A vida fora do campo ideológico tem regras. Antunes aprendeu a ferro e fogo cada uma delas. Ele sabia, aquele rapaz era um monstro e nunca teria salvação, mas receberia da justiça um perdão que não merecia. Podia ter sido sua filha hoje, não foi, mas nada impedia que o fosse no futuro, nas mãos do mesmo estuprador que violentou aquela menina.
Agora ele estava ali, pronto para dar cabo do marginal. Ninguém saberia, ninguém se importaria. Era só apertar o gatilho e ir embora com a certeza de que pelo menos aquele rapaz, menor de idade, mas já homem feito, não voltaria a fazer chorar um pai como ele, ao ver a filha violentada e com a garganta dilacerada.
Antunes pensou em toda sua vida como policial até aquele instante. Ponderava entre a razão e a emoção, arrumando desculpas imaginárias para justificar o que faria. Ele nunca havia ferido ninguém, muito menos tirado uma vida. Faltava-lhe coragem para apertar o gatilho.
O silêncio perante seus iguais, enquanto somente as lamurias do meliante eram ouvidas, duraram exatos sete segundos, o tempo necessário para a reflexão, para a decisão que não teria mais volta. Que o transformaria para sempre, trilhando um caminho diferente daquele que havia traçado quando sentou à mesa para fazer a prova do concurso para delegado.
Um disparo e o choro interrompido. O silêncio predominava. O sistema havia vencido.
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