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O massacre – Parte 2

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Antes de prosseguir, leia O massacre

Assim que conseguiu a liberação da reserva indígena para o plantio de soja, a prefeitura desistiu do projeto alegando pouco interesse de investidores e fazendeiros locais. Oficialmente, o massacre dos Kaiowás não tinha ligação alguma com o governo e a mídia, de uma forma geral, pouco se importou com o assassinato de tantos índios. A FUNAI não tinha força política para exigir maiores explicações. Alterar os planos àquela altura não mudou a rotina da população.

Um grande shopping na região traria mais investimentos à cidade, progresso e agradaria a alta sociedade que ansiava por melhorias. A prefeitura não perdeu tempo e realizou uma licitação junto às empresas e IBAMA para iniciar as obras o quanto antes, evitando atrito com ambientalistas e defensores do povo indígena. As cartas estavam marcadas desde sempre, nunca foi a intenção do prefeito o plantio de soja, e a empreiteira que venceu a licitação havia feito um estudo prévio para o Shopping a ser construído, estando assim apta a cumprir todas as exigências do edital, tudo realizado de forma lícita perante aos olhos da justiça.

Assim que o resultado da disputa foi divulgado e o contrato assinado, a prefeitura deu a ordem de serviço para o início da operação, liberando a empreiteira para começar o trabalho de desmatamento. Muitos homens foram enviados à região para o trabalho inicial, juntando-se aos recém-contratados, todos moradores da cidade, para o começo das obras.

Geraldo era o homem de confiança do senhor Camargo, presidente da empreiteira, e foi um dos primeiros a chegar para tocar a obra. Levou consigo dez funcionários do escritório e mais vinte operários que orientariam os temporários contratados, nessa primeira fase. Reuniu os homens alertando-os para a necessidade de início imediato do desmatamento, em menos de vinte dias, todas as árvores já deveriam estar no chão para que fosse possível implantar os andaimes.

Os uniformes foram distribuídos, assim como todo o material de trabalho: capacetes, luvas, botas e as ferramentas. O senhor Camargo tinha verdadeira ojeriza em gastar dinheiro com indenizações às famílias dos operários, em caso de acidente. Para ele, tudo tinha que estar dentro das conformidades. A lei trabalhista é severa e não há porque deixar de segui-la, gastando mais dinheiro do que deveria com funcionários. O acampamento estava montado e assim que amanhecesse os trabalhos seriam encaminhados.

A segunda-feira iniciou com o tempo nublado, a previsão era de chuva para o restante do dia. Nada que atrapalhasse o início do projeto. Assim que os homens começaram a capinar tudo e a estudar o derrubamento das árvores, Geraldo ligou para o patrão a fim de anunciar o início da empreitada. O senhor Camargo estava ansioso pelo contato, e assim que Solange anunciou a ligação, pediu para transferir.

– E aí Geraldo? Como estão as coisas? Tudo dentro do previsto? – questionou.

– Sim doutor, tudo dentro dos conformes, a rapaziada é gente boa, parecem bons de trabalho, acho que em no máximo trinta dias isso aqui vai estar lisinho para começarmos. Mas vou adiantar ao máximo, tentar entregar o pátio em vinte dias.

– Muito bem Geraldo, qualquer problema, entre em contato. Se aparecer alguém de qualquer ONG, FUNAI, Direitos Humanos ou MST, me avise que vou pessoalmente resolver a pendenga. O prefeito me garantiu que tudo estará como combinamos, mas sabe como é essa gente, não duvido que apareça algum desses espíritos sem luz – encerrou desligando o telefone.

Geraldo voltou e se juntou ao grupo, orientando cada detalhe para que tudo saísse conforme o combinado. Ele já havia participado de processos semelhantes, sabia bem como derrubar umas árvores e iniciar qualquer obra em poucos dias. Não à toa era o funcionário de confiança da empreiteira do senhor Camargo.

Os funcionários trabalhavam em dois turnos para acelerar a primeira fase da construção do shopping. Uma parte iniciava às 7h e parava pra almoçar ao meio dia, retornando uma hora depois e indo até às 15h. A outra parte da equipe chegava às 14h e trabalhava até às 22h, quando todos paravam pra jantar no acampamento. A primeira semana fluiu sem maiores problemas. As árvores eram derrubadas uma a uma e colocadas em caminhões para serem enviadas às fábricas no centro, tudo tinha destino certo e acordos bem amarrados, todo mundo sairia ganhando na transação.

Enquanto o desmatamento seguia de vento em poupa, Naara reuniu os sobreviventes do massacre para tentar reconstruir a aldeia e impedir que toda sua antiga terra fosse destruída. Como Tupã permitia tanto sofrimento sobre seu povo? Ele sozinho não seria capaz de enfrentar todo o sistema e sabia que rezando não conseguiria impedir mais um ato contra os seus. A jovem Eirapuã era neta do falecido Magé e seria preparada para assumir seu posto um dia. Com apenas quatorze anos, a menina não chegou a receber grandes conhecimentos e nem estava preparada para ter a calma de um pajé. Ainda era muito jovem, impetuosa e só pensava em vingança.

– Naara, precisamos voltar pra nossa terra, não podemos ficar de braços cruzados enquanto destroem nossa casa – disse a menina enquanto o jovem pensava em um jeito de salvar Tekoha.

– Você não entende Eirapuã. Somos poucos, bem poucos. Eu queria poder enfrentá-los. Se ainda tivéssemos Kaluanã ao nosso lado ele poderia nos orientar, nos guiar pelo melhor caminho. Eu nunca me preparei para assumir a posição que estou agora, é um fardo muito grande conduzir o nosso povo e ainda ter de salvar nossa terra, talvez tenhamos que desistir e seguir um novo rumo, pedir ajuda e sobreviver – resignou-se.

– Nunca! – disse a menina antes de correr para o meio da mata sem maiores explicações.

Naara estava preocupado com Eirapuã, ela era jovem e ainda não havia entendido que a realidade agora era outra. Eles eram poucos, minguaram ao longo dos anos e com o assassinato da maioria deles, só restaram crianças e idosos. Eles seriam dizimados se tentassem qualquer confronto. Ele pensava seriamente em buscar apoio da FUNAI e do Governo Federal para receber ajuda financeira, tentando um novo pedaço de terra para recomeçar e reestabelecer a tribo no futuro. O confronto hoje já não era mais possível.

O jovem guerreiro descansava em uma rede improvisada olhando as estrelas quando foi interrompido por Eirapuã. A menina insistia para que fossem até sua terra, ele precisava ver com os próprios olhos o que estava acontecendo. Depois de muita insistência, Naara levantou-se e seguiu a indiazinha em direção ao local onde antes ficava sua tribo. Ele não podia acreditar em seus olhos, quase metade da floresta havia tombado, animais mortos pelo chão e árvores pelo caminho. A mata estava morrendo e ele nada podia fazer. Observou as barracas ao longe, todos dormiam, mas no dia seguinte seguiriam com o novo massacre, dessa vez envolvendo a fauna e a flora que ali habitavam desde sempre.

Naara voltou arrasado, lamentando tudo que acontecia diante de seus olhos, enquanto Eirapuã esbravejava. Ela queria matar cada um deles, se pudesse os enfrentaria sozinha e acabaria com a matança de tudo aquilo que fazia parte de seu universo.

– Precisamos fazer alguma coisa Naara. Eles não podem acabar com a nossa terra – disse a menina.

– Já conversamos sobre isso, você sabe que nada podemos fazer sozinhos.

– Não! Podemos apelar para os Deuses… Jaci, Guaraci, Tupã. Podemos fazer nossos rituais e implorar por socorro.

– Você não entende. Os Deuses nos abandonaram, eu já fiz todas as orações possíveis. Segui a risca os rituais de Magé, mas nada deu solução, Tupã nos esqueceu aqui para morrer e eu não sei por que – disse enquanto as lágrimas escorriam por sua pele vermelha.

Eirapuã não conseguia aceitar a ideia de que tudo estava perdido, precisava haver uma solução, alguém precisava ajudar e tirá-los daquela agonia. A menina pensou, pensou e acabou chegando a uma conclusão:

– Anhanguera!

– O que você disse menina?

Ela havia pensado em voz alta. Se não podia contar com os Deuses, porque não contar com a ajuda de um demônio da floresta?

– Se Tupã não mais nos ouve, porque não apelamos para uma entidade maligna da floresta? Ela poderia dar cabo de todos num piscar de olhos – explicou.

– Você enlouqueceu? Você sabe que a proteção da floresta é algo que um anhanguera faz sozinho, não podemos nos meter com eles, se algo der errado, podemos ser devorados ou até mesmo sermos transformados em um demônio da mata. Esqueça isso, se não podemos contar com espíritos bons, não serão os maus que irão nos ajudar.

A menina concordou com a cabeça, mas não estava disposta a desistir da ideia. Todos se aprontaram para dormir em suas esteiras, esperando pela manhã seguinte. Eirapuã levantou-se na escuridão e se embrenhou pelo meio da floresta. Levou uma pequena cesta de palha e saiu recolhendo os frutos que encontrava pelo caminho. Voltou ao acampamento indígena e colocou em uma cuia um pouco de tacacá e em outra um punhado de tapioca. Precisava montar uma boa oferenda para tentar convencer o demônio a defender a floresta sem ser devorada por ele.

Colocou tudo que pode juntar em uma toalha de palha de milho, e seguiu novamente em direção ao meio da floresta. Diferente do costume indígena, a menina não deixaria o alimento à beira do rio para pedir proteção e evitar o confronto com o demônio. Ela precisava esperá-lo, confrontá-lo e pedir por socorro. Abriu a toalha e retirou cuidadosamente a cesta de frutos e as cuias, colocando-as uma ao lado da outra, afastando-se em seguida e esperando pelo exato instante em que o demônio se aproximaria da oferenda para pedir por socorro.

Os barulhos da mata davam ainda mais medo em Eirapuã. Ela sabia dos riscos de estar ali, mas era sua última esperança. Aguardava calada, esperando qualquer movimento. Olhava em todas as direções e nada, apenas uma leve brisa que balançava as folhas das árvores e a água que corria o rio em direção à cidade. Naara acordou no meio da noite para beber um pouco de água quando percebeu a ausência da menina e, logo imaginou que ela estaria se envolvendo em problemas. Pegou uma lança e partiu em direção ao meio da floresta, seguindo as pistas que a menina havia deixado para que pudesse trazê-la em segurança.

Eirapuã esperava ávida pela chegada do demônio. Àquela hora nenhum animal se aproximava das oferendas, nenhum barulho, nada se movimentava, somente os galhos das árvores. Ela tinha medo e quando já se preparava para desistir e voltar ao acampamento ouviu um grunhido, algo que não era capaz de identificar. Pensou em correr, não tinha mais coragem para estar ali. Uma sombra surgia ao fundo da mata. Era grande, com pelos ouriçados e fuçava pelas ventas. Se pudesse fugiria dali, mas estava paralisada, não tinha forças sequer para movimentar as pernas. Ele era enorme, poderia chegar até ela em instantes se percebesse sua presença. A menina tentava reconhecer o que estava ali por detrás dos galhos, mas não conseguia identificar o ser que lhe causava tanto pavor.

Naara recolhia cada pequeno galho quebrado e folha rasgada, seguia os passos da menina para encontrá-la o quanto antes. Ela ali, imóvel tentando identificar a criatura, quando o rapaz a avistou ao longe. Sentiu o perigo e viu que a menina estava em transe, olhando na direção da mata e também pôde avistar a criatura. Ele passou a caminhar na ponta dos pés, para não chamar a atenção daquilo que não poderia ver, quando em um deslize quebrou um pequeno galho chamando a atenção da besta que com uma fúria aterrorizante correu em direção a ele. Naara e Eirapuã puderam enfim avistar o animal, berrando ao mesmo tempo:

– kaiti’tu!

Leia O massacre – Parte final

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Sobre Rodrigo Barros

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Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

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