Patrícia preparava-se para mais um dia de diversão com seus amigos. Aquela quinta-feira tendia a ser um pouco diferente, porque com os jogos escolares chegando ao fim, o ginásio ficaria dedicado ao baile comemorativo, com premiações e muita dança entre os alunos. Dona Vera não gostava muito da ideia da filha ficar até tarde fora de casa. Já com o corpo formado, tinha receio de que algo lhe acontecesse pelas ruas escuras da cidade. Do ginásio até sua casa, a menina teria que percorrer um longo caminho pela estrada.
Dona Vera tinha razão, apesar de ainda muito nova, a menina já estampava formas voluptuosas, seios fartos, coxas grossas, e um quadril de fazer inveja a muita mulher madura. Patrícia não costumava dar ouvidos às lamúrias de sua mãe. Sempre que tinha baile, colocava as roupas mais justas e ia se divertir, ignorando os perigos que a noite poderia revelar. Por sorte, até aquele dia nada de mal havia acontecido… Até aquele dia.
Como sua equipe já havia vencido a última competição dos jogos há dois dias, Patrícia não foi à escola, ficou em casa se preparando para o baile ao final da tarde. Escolheu uma pulseira colorida e brincos da mesma cor, que combinavam com o adereço. O vestido era negro, grudado ao corpo, ressaltando suas formas. O salto que usava, dava-lhe um ar de mais velha e para não criar rusgas com Dona Vera, Patrícia foi ao baile acompanhada de dois primos, que juraram “de pés juntos” devolverem a menina em segurança.
Após os festejos, entregas de medalhas e muita comemoração, o baile começou. Como se tratava de uma festa entre alunos, era terminantemente proibido o consumo de bebidas alcoólicas. Contudo, sabemos o que acontece em reuniões de adolescentes, os jovens sempre dão um jeito de levar alguma coisa para misturar aos ponches ou sucos distribuídos nas festas. E foi assim que Leandro e Leonardo, homônimos da dupla sertaneja, e primos de Patrícia, levaram por dentro da meia uma pequena garrafa com algum uísque de má qualidade que encontraram guardado na dispensa.
No meio do baile, Patrícia procurou pelos primos, pois precisava combinar a hora de voltar pra casa, mas não os encontrou. Soube pelos amigos, que Leonardo, completamente embriagado, voltou carregado pelos colegas, mas que Leandro estava em algum canto com Mirian, e que logo estaria de volta. O tempo foi passando e nada de Leandro voltar. Patrícia começava a se preocupar, não com os rumos do primo, mas com sua mãe, que se visse a menina chegando sozinha em casa, não deixaria que ela se divertisse por uns bons meses.
Leandro não apareceu, e todos os amigos que seguiriam pelo mesmo caminho na estrada, já tinham ido embora. Patrícia ficou nervosa, e o que temia aconteceu, precisava voltar pra casa sem a companhia de nenhum dos dois e já imaginava o tamanho da bronca que ia levar. Então, que pelo menos chegasse logo e em segurança para amenizar a fúria de Dona Vera.
Patrícia atravessou o centro da cidade em menos de dez minutos. Pelo horário, não teria ônibus para poder chegar à Portela, teria de ir a pé mesmo. Uns quarenta minutos a mais e estaria em casa. A noite estava fria, não chovia, mas o nevoeiro transformava o trajeto em algo bem mais sombrio que o normal. Passando pelo pontilhão, a situação ficava mais amena, porque mesmo que não viesse por dentro, por não gostar de passar em frente ao cemitério, do centro até o pontilhão, quase não existiam casas, e sentia calafrios só de pensar em ter de atravessar aquela parte da estrada.
Poucas luzes ainda estavam acesas nas casas. A cidade dormia. Não se ouviam pássaros, carros, nada. Patrícia acelerava os passos, mesmo próxima, devido ao nevoeiro, mal podia enxergar a curva da estrada das Mangueiras. Enquanto caminhava apressada, a menina ouviu algo a sua esquerda. O som vinha de alguma coisa por entre as árvores. O que poderia estar andando por ali àquela hora? Algum animal? Um cachorro ou um cavalo talvez. Apressou o passo e sentia que algo a observava, era diferente de todas as sensações de medo que já sentira ao andar por aquele caminho. Um calafrio lhe percorreu a espinha, não era fruto de sua imaginação, ela ouvia. Algo a acompanhava de longe, a observava. Não era capaz de identificar nada por entre as árvores, mas sabia que tinha alguma coisa ali. Algo ruim parecia estar por vir, o que era medo se transformou em pavor, o som parecia cada instante mais próximo. Ela apressava o passo, e sempre que mudava a velocidade, quem (ou o que) a observava, se movimentava na mesma velocidade, sem se aproximar, mas sem perder distância.
Era chegado o momento, se pudesse correr, alcançaria a primeira rua à direita e em poucos minutos chegaria a alguma casa onde poderia solicitar abrigo, e quem sabe um telefone para ligar para sua mãe e pedir que alguém a buscasse. Patrícia tirou os sapatos, era impossível correr com um salto daqueles. Não podia vacilar ou parar pra pensar, nada. Só podia correr. E ela correu. Enquanto corria podia ouvir “aquilo” se aproximando, quase tão veloz quanto ela, agora era nítido o som que ouvia. Não se tratava de uma pessoa, devia ser um animal, podia ouvir as patas esmagando as folhas e os galhos caídos no chão. Não conseguia identificar de qual animal se tratava, mas não era pequeno. Um cão? Talvez, mas parecia maior, o porte do animal, a respiração e a força com que quebrava os galhos parecia algo maior mesmo, bem maior.
Ela corria o mais rápido que podia e mal sentia as pedras ou qualquer outra coisa que a machucasse, só queria chegar à primeira casa que pudesse alcançar, porém, o animal se aproximava rápido demais, não teria muito tempo. Mesmo com o nevoeiro, conseguiu avistar a primeira luz da estrada das Mangueiras, havia alguém acordado naquele sítio e talvez conseguisse abrigo. Não queria nem olhar pra trás, não precisava identificar o animal, só precisava fugir, mas não teria tempo, e nem como lutar com uma criatura tão grande.
O animal desferiu o primeiro golpe, uma pata gigante rasgou-lhe as costas. Uma dor insuportável tomou conta do corpo da menina, que imediatamente caiu ao chão. O sangue jorrava manchando a areia de vermelho. Patrícia tentou se levantar e continuar a fuga, mas outro golpe, desta vez na perna, fez com que a menina voltasse ao chão. Deitada e sentindo muitas dores, pode enfim encarar seu agressor. Não era um cão, como pode prever anteriormente, era realmente algo bem maior, um lobo? Pensou nos segundos em que buscava alguma maneira de fugir. Não poderia ser um lobo, no Brasil não existem lobos. A fera a encarava de forma pacata. Parecia pensar em algo, não olhava como um cão raivoso. Ela podia ter certeza de que arquitetava alguma coisa.
Patrícia viu uma ripa de madeira próxima e em um descuido da criatura, cravou-lhe a estaca na perna fazendo com que o animal urrasse alto, uma mistura de uivo com um grunhido. A menina se levantou às pressas, rezando para que alguma boa alma aparecesse e lhe salvasse a vida, mas àquela altura, só mesmo um milagre de Deus poderia salvá-la.
Conseguiu se levantar e correr em direção à estrada, o animal ainda sentia o golpe, lambendo a perna como se pudesse cicatrizar a ferida. A fera fitou a menina nos olhos, um olhar perverso, diferente do de antes, agora havia ódio, parecia pronta para destruir sua presa. Patrícia corria com as costas e a perna em carne viva. Gritava pedindo ajuda, mas ninguém apareceria para salvá-la.
O animal voltou a persegui-la, e com um novo golpe fez a menina rolar ao chão. Abocanhou-lhe o braço esquerdo, e com um só movimento, arrancou-lhe do corpo, devorando-o em segundos. Patrícia berrava, chorava e implorava por sua vida. A fera uivava com o sangue escorrendo pelos lábios. Era impossível sobreviver a um ataque como aquele.
Em poucos minutos, a noite não ouvia mais os gritos da menina. O silêncio voltava a reinar na pacata Cidade. Patrícia não ouviria bronca por ter voltado sozinha do baile. Os amigos também não ouviriam mais sua voz. Dona Vera nunca mais veria sua menina. Na verdade, ninguém mais a veria, apenas pedaços de seu corpo poderiam ser vistos na manhã seguinte, sem que ninguém pudesse imaginar o que Patrícia encontrou a caminho de casa.