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Cidade invisível: apropriação cultural e o complexo de vira-latas

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Eu tomei conhecimento da série Cidade invisível, uma produção original da Netflix, ao acaso. Sim, antes mesmo da série chamar a atenção do público em geral, e sem nunca ter lido nada sobre o projeto, fui surpreendido com um trailer após terminar de assistir a qualquer outra coisa no serviço de streaming. De cara fiquei interessado, já que sou aficionado pelo folclore brasileiro. Assisti à série inteira em cerca de três dias, e como a maioria das pessoas, adorei.

Cidade invisível traz personagens do nosso folclore vivendo em meio à sociedade, envolvidos em uma trama de investigação policial. Entidades escondidas passando-se por seres humanos comuns, entre eles o Boto, a Iara, o Curupira, o Saci, o Tutu Marambá e a Cuca. A série é sucesso absoluto não somente no Brasil. Até o momento, ela já entrou no Top 10 de 48 países, e possui um índice invejável de 7.5 no IMDb. O sucesso, inevitavelmente, traz críticas positivas e críticas negativas.

Umas das primeiras críticas que li, surgiram em virtude da caracterização da Cuca, vivida pela atriz Alessandra Negrini. A personagem com aparência humana agradou pouco aos saudosistas do Sítio do Pica-pau Amarelo (série infantil baseada na obra de Monteiro Lobato) que esperavam uma bruxa em forma de jacaré. Apesar da falta de conhecimento sobre a entidade, a reclamação é até aceitável, visto que gerações cresceram assistindo ao especial infantil da Rede Globo ao longo das últimas décadas, e, portanto, não imaginam a Cuca de outra maneira. Monteiro Lobato a descreveu em seu livro O Saci, publicado originalmente em 1921, da seguinte forma: “…tinha cara de jacaré e garras nos dedos como os gaviões, quanto à idade, devia andar para mais de três mil anos. Era velha como o Tempo”. No entanto, a Cuca é retratada de diversas formas em nosso folclore, na maioria das vezes como uma bruxa velha, bem enrugada e corcunda, que sequestra crianças durante a noite. Vale ressaltar ainda, que a Cuca foi trazida para o Brasil pelos portugueses, já que a lenda tem origem na Península Ibérica, sendo bem popular entre portugueses e espanhóis.

Fora a costumeira torcida de nariz que alguns brasileiros tendem a dar para produções nacionais, sendo críticos ferozes de tudo que é produzido por aqui, apesar de elogiarem qualquer porcaria produzida em Hollywood, o ápice do nosso complexo de vira-latas, a crítica que mais me incomodou foi a acusação de apropriação cultural por parte dos produtores da série. Brasileiros escrevendo sobre o folclore de seu país e sendo acusados de apropriação cultural. Seria cômico, se não fosse trágico.

Alguns ativistas acusam os produtores da série de trabalharem com crenças e culturas indígenas sem o protagonismo indígena, alegando que nem como figurantes, o que não se traduz na realidade. A história se passa no Rio de Janeiro, capital, natural que os transeuntes sejam miscigenados, e não indígenas. Ainda assim, a família do Curupira, vivido pelo ator Fábio Lago, é composta por atores indígenas. Até penso que a Iara, também conhecida como Mãe D’água, vivida pela atriz Jéssica Córes, que é negra, poderia ter sido interpretada por uma atriz com características indígenas, como a talentosíssima Dira Paes, mas isso pouco reflete na trama, em si. O Brasil, formado por um povo miscigenado, vive na ânsia por um protagonismo em sua própria história. Veja bem, ninguém questiona as produções da Marvel onde os atores Chris Hemsworth, Tom Hiddleston e Anthony Hopkins, que interpretam Thor, Loki e Odin, respectivamente, não têm origem nórdica. Pensem ainda em Iris Elba, um ator negro, vivendo o Heimdall, descrito na mitologia como o mais alvo dos deuses?

Deveria ser só entretenimento, mas alguns não conseguem viver sem empunhar suas bandeiras.

O que mais me incomoda é a depreciação daqueles que trabalharam para produzir a série. Frases como “faltou estudar mais” ou “se baseiam na Wikipédia” foram ditas por alguns ativistas para criticar a falta de protagonismo indígena. Antes de mais nada, é preciso valorizar as pessoas envolvidas na produção. O diretor responsável pela criação da série é Carlos Saldanha, codiretor de A Era do Gelo e Robôs, e diretor de A Era do Gelo 2, A Era do Gelo 3, Rio e Rio 2, sendo estes dois últimos longas-metragens presentes entre os filmes de maior bilheteria de todos os tempos. O diretor contou com o roteiro de Raphael Draccon e Carolina Munhóz, escritores pra lá de consagrados na literatura nacional e que também trabalham roteirizando produções na Rede Globo e Netflix, e com a consultoria da jornalista Januaria Cristina Alves, mestra em comunicação social e escritora, com mais de 40 livros publicados, entre eles Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro, livro que reúne 141 personagens do nosso folclore, focando em um recorte que busca a diversidade de origens, indígena, africana, europeia e oriental, como elemento constituinte de nossa cultura. Não, não faltou conhecimento para produzir a série, e os personagens não foram inspirados em artigos da Wikipédia.

É preciso deixar claro que o nosso folclore não tem origem apenas indígena. A escritora Januaria explica bem essa questão: “O folclore é a história da gente. Ele é a junção das nossas origens africanas, indígenas, europeias, orientais. É o jeito que o Brasil encontrou de contar a nossa história”. Não pode haver protagonismo étnico em histórias contadas por um povo miscigenado.

A Cuca, como citei acima, tem origem na Península Ibérica, o Saci que conhecemos atualmente é bem diferente da lenda original, ele não era um menino negro de uma perna só, que fuma cachimbo e usa um gorro mágico, essas foram adaptações trazidas a ele pelos povos africanos e europeus. A lenda do curupira foi sendo adaptada ao longo do tempo para se assemelhar aos duendes europeus. O Corpo-seco, ou Unhudo, também representado na série, é uma lenda que faz parte do folclore brasileiro e do folclore ibérico. E por aí vai.

Querer atribuir a apenas uma etnia o folclore brasileiro é o que podemos chamar de apropriação cultural. Ressalto ainda que não há um só povo indígena, os povos indígenas do Brasil compreendem muitos diferentes grupos étnicos que habitam o país desde milênios antes do início da colonização portuguesa, e cada um deles tinha suas próprias versões de diversas lendas. Personagens como o Curupira era retratado de forma bastante diferente conforme a localização do país. Parte do nosso folclore sequer surgiu no Brasil, e sim nos países vizinhos, Argentina, Uruguai e Paraguai.

Caso você se interesse pelos livros citados no texto, você pode adquiri-los nos links abaixo:

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Sobre Rodrigo Barros

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Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

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