Kindle paperwhite: Prático como você

O plano perfeito

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Tudo havia sido minuciosamente calculado e nada poderia dar errado. O velho homem sabia que a única maneira de escapar daquela prisão seria pelo ar. Se tentasse escapar utilizando algum meio terrestre ou marítimo, seria pego por Minos, que controlava esses meios.

Para que pudesse usar o ar para fugir daquele labirinto, o velho homem havia confeccionado dois pares de asas, com cera de abelha e penas de gaivotas. Ele já as havia testado, eram suficientes para carregar um homem adulto até a ilha mais próxima à Creta. Sabia que ao chegar à Sicília seria acolhido na casa do rei Cocálo e não correria mais perigo.

A única coisa que preocupava era o companheiro de clausura. Seu filho, jovem demais, poderia colocar tudo a perder se não seguisse todas as orientações de voo. Precisavam se alimentar bem aquela noite e descansar, o caminho seria árduo e teriam de fazer o esforço de duas aves para que fosse possível atravessar o mar Egeu.

Seu filho logo pegou no sono, enquanto ele sentou-se no tronco de uma arvore para analisar as estrelas e traçar mentalmente a rota aérea até a Sicília. A noite era silenciosa e o mar estava calmo, a manhã seguinte não seria diferente, precisavam partir assim que o dia amanhecesse ao nascer do sol. O caminho estaria iluminado, poderiam enxergar todo o percurso e o destino final ao longe, sem se preocupar com os raios de sol que poderiam derreter a cera que colava as asas, dando um fim trágico à empreitada. O velho adormeceu ali mesmo, contando as estrelas que brilhavam no escuro do céu.

Pouco antes de amanhecer, seu filho já estava de pé testando o par de asas confeccionado para ele. Com os primeiros movimentos ao farfalhar suas asas, o jovem rapaz já saiu do solo, sentindo a brisa do mar refrescando seu rosto. O prazer de estar distante do solo, olhando o chão ao longe, dava-lhe uma sensação de liberdade nunca antes sentida.

O velho homem acordou e avistou seu filho testando o par de asas. Pediu para que ele descesse porque não poderiam perder tempo, era chegada a hora de partir. Assim que o jovem rapaz retornou ao solo, recebeu as orientações de seu pai.

— Meu filho, ouça cuidadosamente cada uma das minhas orientações. Não podemos falhar, qualquer erro será determinante para o nosso fracasso, e isso poderá causar o fim de nossas vidas.

O rapaz acenou com a cabeça prestando bastante atenção no que seu pai dizia.

— Precisamos beber bastante água antes de partir, separei duas caçambas que enchi no poço. Ainda que o sol esteja fraco ao amanhecer, não podemos correr o risco de desidratar antes de chegarmos à outra ilha. É humanamente impossível atravessarmos o Egeu carregando qualquer pertence, as asas não aguentariam, não teríamos forças para a travessia. A única coisa que utilizaremos serão as nossas asas. Não poderemos estar vestindo nenhuma peça de roupa, nada pode atrapalhar nosso voo.

Após as primeiras instruções, o homem foi até o poço e trouxe as duas caçambas para que bebessem toda a água que havia recolhido. Assim que se hidrataram, o jovem recebeu mais instruções para evitar qualquer problema na travessia.

— Entenda meu filho, precisamos cumprir duas regras para conseguirmos atravessar o Egeu. Aconteça o que acontecer, não poderá deixar de segui-las, isso causaria nossa morte. Devemos voar na mesma altura dos muros desse labirinto, a aproximação do mar poderia umedecer as penas, nos tornaríamos mais pesados, e não conseguiríamos mais manter a estabilidade no ar, cairíamos na água e Minos não nos deixaria viver. Outro ponto a ser observado é o sol. Se voarmos muito alto, os raios solares derreteriam a cera que cola as penas, em instantes despencaríamos em direção ao mar.

O rapaz concordou com cada uma das orientações e começou a despir-se para que o pai pudesse colocar-lhe as asas de forma precisa. O homem fixou o par de asas em seu filho, já nu, e pediu para que fizesse o mesmo, assim que tirasse toda a roupa. Aproximaram-se da fronteira da fortaleza e o velho deu-lhe a última instrução.

— Eu voarei primeiro, conheço o mar Egeu por já tê-lo navegado no passado. A você cabe me seguir assim que eu ultrapassar o muro, nada dará errado se voarmos juntos e estarei à frente para guiá-lo, caso ocorra alguma coisa, é só me gritar que voltarei para acudi-lo. E não se esqueça, voe na mesma altura que eu, não se aproxime do mar, e menos ainda do sol. Chegou a hora.

O velho homem iniciou o farfalhar de suas asas alcançando em segundos o alto da masmorra. Seu filho também iniciou voo, seguindo o pai que sobrevoava o mar. O sol já iluminava todo o caminho e em cerca de uma hora, eles estariam na Sicília, livres de Minos para sempre.

A brisa do mar ajudava a refrescar seus corpos enquanto se esforçavam para que suas asas os carregassem até a outra ilha. O homem apenas focava em seu destino, ignorando qualquer coisa em sua volta. Precisava guiar seu filho em direção à liberdade e sabia que qualquer distração poderia cansá-lo ainda mais, e não teria forças para fugir.

O vigor físico do rapaz era muito maior que o de seu pai, ele imaginava que poderia chegar ao destino final até mesmo sozinho, e voava tranquilo seguindo as orientações e mantendo uma distância razoável do outro homem pássaro para evitar colisões, já que sabia que era capaz de voar mais rápido que o velho homem. Enquanto seguia a risca tudo aquilo que seu pai havia lhe pedido, o jovem percebeu que algumas gaivotas voavam ao seu lado, quase que enxergando neles, os seus líderes.

Fascinado com a admiração que causava nas gaivotas, com o frescor daquela manhã e com a sensação única de liberdade, o jovem passou a brincar com os pássaros, fazendo com que eles o seguissem por onde fosse. O rapaz sabia que chegaria de forma tranquila a outra ilha, não precisava ter a preocupação excessiva de seu pai, porque era muito mais forte e faria o mesmo percurso com bem menos esforço. Deixou que o velho seguisse a linha reta e passou a voar em diversas direções para que as gaivotas desempenhassem o mesmo balé no céu.

Assim que percebia que se distanciava de seu pai, o rapaz voava novamente em sua direção, aproximando-se e seguindo em direção à Sicília. Por algumas vezes, o velho homem olhava para trás com a intenção de verificar se seu filho estava voando próximo a ele, e sempre percebia uma distância segura entre ambos.

Todas as vezes que brincava com pássaros, o rapaz se arriscava voando para mais longe de seu pai, e consequentemente de seu destino final, mas não se preocupava, confiava em sua força para logo alcançá-lo e terminar a travessia. As gaivotas não somente o seguiam como também mergulhavam no mar a procura de peixes. Ele não poderia se arriscar tanto as acompanhando, pois sabia que isso poderia causar um dano irreparável às suas asas. Esperava então que elas retornassem para continuar a brincadeira. Assim que voltavam do mar, as gaivotas voavam mais alto que ele, bem mais alto, pareciam tentar se secar com a brisa do vento e com a proximidade do sol.

O jovem aproximou-se de seu pai para não perder o rumo e assim que chegou perto mais uma vez, decidiu seguir novamente as gaivotas. Elas faziam acrobacias pelo céu, voavam o mais alto que podiam, e num voo rasante mergulhavam no mar como uma flecha, para depois ressurgir e voltar a voar o mais alto que podiam. Ele não poderia descer tanto para acompanha-las, mas e voar mais alto? Sabia que seu pai era cauteloso, mas o sol não estava forte, elas voavam alto e mesmo assim seguiam molhadas, o astro amarelo não seria capaz de derreter a cera de suas asas, ele poderia arriscar um pouco.

Subiu pouca coisa mais alto que seu pai, retornando em seguida para não correr grandes riscos. Viu que nada acontece e voltou a subir, cada vez mais alto, sentindo-se como um verdadeiro homem pássaro, como um dos grandes deuses do olimpo, aqueles que tudo podiam. A sensação de poder e liberdade fez com que o jovem se esquecesse da orientação de seu pai e do tempo que estava voando tão próximo ao sol.

Enquanto batia suas asas o mais forte que podia, sentia que a velocidade aumentava, aproximando-se e distanciando-se de seu pai com total controle sobre o voo. Não tinha mais nenhuma preocupação, era senhor de seu destino e de seus atos, poderia voar sempre que quisesse e o faria, mesmo sem o consentimento de seu pai no futuro. Ele seria agora o dono dos céus, ainda que fosse mortal, viveria o resto de sua vida sobrevoando todos os pontos do planeta.

Eles voavam há mais de meia hora, o sol já estava alto e o calor só não era percebido devido à brisa do Egeu. O jovem não era capaz de perceber ainda, mas as penas de suas asas estavam aos poucos descolando, assim como havia previsto seu pai. Ele estava voando alto demais, e o sol forte começava a derreter a cera que mantinha as asas em perfeito estado. Aos poucos, Ícaro começava a perder altura. Por mais força que tivesse, independente da velocidade que batesse suas asas, ele já não conseguia mais manter-se estável sobre o ar, as penas se descolavam em uma velocidade maior do que ele era capaz de controlar.

Seu pai estava a certa distância e não percebia o que estava Ocorrendo. O rapaz tentava se aproximar para que pudesse pedir socorro, sem ajuda não conseguiria manter-se no ar. Enquanto batia suas asas em direção ao pai, Ícaro percebia que as penas iam se descolando uma a uma, e já não era capaz de seguir na velocidade de antes. Gritou por socorro.

— Pai, me ajuda, olha pra trás, minhas asas, elas estão descolando. Eu vou cair! — disse aos berros, sem surtir muito efeito, já que o velho homem estava distante o suficiente para não ouvi-lo.

Quando Dédalo notou que seu filho não mais o acompanhava, entrou em desespero buscando-o pelo ar. Olhou em todas as direções e não foi capaz de encontrá-lo. Ao mesmo tempo em que se esforçava para terminar a travessia, buscava em desespero por seu filho. Gritava sem parar por Ícaro, na vã esperança que o menino reaparecesse como um relâmpago no céu.

Logo depois pôde perceber o paradeiro de seu herdeiro. Avistou as asas de Ícaro flutuando no mar Egeu. O rapaz havia caído e se afogado, não mais pertencia ao mundo dos vivos. Dédalo se culpava pela morte do rapaz, deveria ter prestado mais atenção em seu filho, pois sabia que a única coisa que poderia atrapalhar a travessia seria a impetuosidade do jovem.

Dédalo enfim chegou à Sicília. Assim que avistou a areia, desceu e pousou em segurança. O velho homem ajoelhou-se e chorou. Ele agora estava livre de Minos e do labirinto, mas carregaria para sempre a dor e a culpa pela perda do filho.

 


 

Este conto está presente na antologia

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Sobre Rodrigo Barros

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Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

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